26/02/2010

Pedro vai trabalhar

Rê, rê! Brincadeira. Meu trabalho é ficar escutando música o dia inteiro. Você leu o que escrevi antes? Quando eu parei, eu estava no banheiro, recém acordado e a meio caminho entre o vaso e a pia. Vamos continuar? Então venha comigo.

Vou engatinhando até a pia depois de me ajudarem a vestir minha cueca e as calças e fico em pé sozinho segurando na pia. Aí quem estiver comigo lava meu rosto, assoa meu nariz, faz minha higiene bucal e penteia meu cabelo. Fico lindão!

Mas tem que ser tudo nessa ordem, porque sou muito sistemático. Acho que tem a ver com uns restinhos de autismo que moram dentro de mim. Da pia para o chão, basta um escorregão!

Meu destino agora é a copa, onde o pão me espera. O pão aqui vai encontrar o pão ali. (rsrsrs) Para ficar em pé na cozinha, eu segurava na maçaneta da porta, enquanto alguém a mantinha aberta, ficava em pé e me sentava numa cadeira giratória, dessas de rodinhas, estratégicamente posicionada. Aí era só alguém me empurrar até a mesa. Finalmente meu pai tomou vergonha na cara e instalou uma barrinha na parede da copa. Já não preciso segurar na maçaneta da porta.

Tudo isso eu estou explicando para mostrar que, mesmo sem poder andar, não sou um peso para ninguém. Tudo é calculado para eu ter sempre onde me segurar quando preciso ficar em pé ou me sentar em algum lugar. Insistiram comigo desde o começo para eu não acabar atrofiado. O melhor exercício é o da necessidade do dia-a-dia. Mais tarde ninguém em casa vai me culpar por estar sofrendo da coluna de tanto me carregar.

Na mesa basta colocar um pão na minha mão e eu como. Como e também esfarelo para todo lado! Depois, chão de novo, engatinhar e o destino é o escritório de meu pai, onde ele colocou uma super poltrona ao lado de sua mesa. Então começa meu trabalho.

Que trabalho eu faço? Bem, eu sou fiscal de música. Fico analisando cada música que toca e geralmente é jazz ou instrumental suave, pois ele diz que o gênero distrai sem distrair. Como meu pai é palestrante e viaja muito, às vezes eu fico em outro lugar, mas é só ele chegar para eu estar pronto para prestar meus serviços de controle jazzistico de qualidade.

22/02/2010

Bom dia, Pedro!

Meus dias são muito parecidos. Gosto de rotina. Acho que em casos como o meu, a rotina dá segurança. Fazer sempre as mesmas coisas, ir sempre pelo mesmo caminho, ter horário para tudo. Sou feliz assim, metódico. Até na hora de acordar, comer ou dormir gosto de tudo igual. Sou enjoado, né?

Acordo com um "Bom dia, Pedro!" lá pelas sete. A essa hora meu pai já está no segundo café, porque é bem madrugador. Quando me chamam, jogo as cobertas para o lado e saio engatinhando, pois minha cama fica na altura do piso para evitar acidentes.

As cobertas são as minhas e alguma da cama ao lado. É que eu aprendi a puxar as cobertas de meu irmão quando ele dormia ali e eu acabava dormindo duas vezes mais quentinho do que ele. Coitado, ele nem reclamava. Agora ele mora bem longe de mim, mas não acho que foi por isso...

Engatinho até o banheiro, seguro numa barrinha presa na parede e fico em pé. Bem, ficar em pé é modo de dizer, porque minhas pernas não esticam muito por causa de uma atrofia dos tendões. Mas é o suficiente para alguém tirar minha calça e a fralda descartável e me ajudar a sentar no vaso.

É ali que trazem meu leite de soja com chocolate para eu tomar no canudinho. Tomo o leite sentado no trono porque nessa hora costumo demorar. Não fico lendo jornal não, pois nem sei ler! É que gosto de fazer as coisas bem feitinhas.

Quando faço o número 2, alguém precisa me limpar com papel e depois lavar meu bumbum no bidê. Se o estrago não foi muito grande, então, além do papel higiênico, aqueles lencinhos umedecidos já resolvem. O pessoal aqui já adquiriu uma boa técnica, mas levou um bom tempo até descobrirem que passar o lencinho umedecido segurando-o com um pedaço de papel evita ficar com a mão fedida.

Se fizer só o número 1, então colocam de novo minha calça, mas sem a fralda, porque minha irmã me ensinou a segurar o xixi até eu engatinhar até o banheiro mais próximo. Ela ensinou também o resto a família a se lembrar de me levar ao banheiro a cada duas horas. Quando eles se esquecem, eu também me esqueço. Azar deles; quem manda esquecer?

18/02/2010

Discriminacao benigna

Quando minha avó encontrava alguém que não falava português ela começava a falar bem alto, achando que a pessoa ia ouvir. Aí meu avô precisava intervir: "Ruth, não precisa gritar que ela não é surda, ela só não fala português".

Já ouviu falar de discriminação benigna? Nem eu, inventei agora. Mas acho que existe uma discriminação benigna, isto é, pessoas que não entendem os portadores de necessidades especiais e os discriminam, mas com boa intenção. Querem só ajudar.

Quem me vê acha que em casa sou carregado de um lado para o outro. Não sou. Eu engatinho, por isso ninguém precisa me carregar. Meu pai colocou barrinhas nas paredes nos banheiros e na copa para eu ficar de pé. Eu engatinho até elas, porque já decorei onde estão, fico de joelhos, agarro a barrinha e fico em pé. Aí eu consigo tirar a calça e a cueca e sentar no vaso sanitário segurando na barrinha só com uma mão.

- Manhê! Veja, sem uma mão!

Faço o mesmo para me sentar na cadeira de banho e na cadeira da copa para almoçar, só que neste caso eu não tiro a calça, é óbvio. Também sei me sentar sozinho na cadeira de rodas, mas quando o assunto é cadeira eu preciso que alguém a coloque na posição, ou acabo sentado no chão. Da cadeira de rodas eu consigo segurar na porta aberta do carro, ficar em pé e sentar no assento.

Eu também sei fazer outras coisas, como segurar meu copo de plástico para beber água, ou a colher para comer de um prato fundo. Sei assoar o nariz (alguém precisa tapar uma narina para mim), e também consigo subir e descer de sofás e poltronas. Tomar banho, vestir a roupa, limpar o bumbum... bem, aí sim eu preciso que alguém faça tudo isso para mim.

Acho que muitos portadores de deficiência teriam uma vida melhor se fossem menos paparicados pelos pais. Alguns morrem de dó do filho e nem tentam descobrir se ele é capaz de fazer alguma coisa. Outros sabem que o filho é capaz, mas preferem fazer porque o filho demora muito. Não estão ajudando nem um pouco...

Mas eu falava da discriminação benigna, que são pessoas que tratam deficientes como se fossem inúteis inválidos, mas com boa intenção. Uma moça, que é paraplégica e cadeirante escreveu para este blog, contou que quando vai ao restaurante com a mãe o garçom só fala com a mãe, nunca com ela.

- O que a menina vai comer? A menina vai beber alguma coisa? A menina terminou?

Tirando o problema das pernas, ela é uma pessoa inteligente e capaz, mas o garçom acha que qualquer pessoa numa cadeira de rodas é um vegetal. E tem gente que acha que cadeirante é mendigo. Vou explicar.

Estou até preocupado de meu pai decidir parar de trabalhar e ganhar a vida às minhas custas. É que ontem estávamos no supermercado e ele se afastou um pouco para pegar umas coisas. Eu fiquei sozinho em minha cadeira de rodas, mas de longe meu pai estava de olho em mim.

Ele viu quando uma velhinha se aproximou de mim, abriu a bolsa, tirou uma moeda e colocou na minha mão. Depois foi embora. Meu pai viu tudo, mas achou melhor não interferir. Tenho um palpite de que ele vai arranjar um chapéu e me levar para a praça. Só falta!

15/02/2010

Nick Vujicic

Conforme prometi, aqui está uma palestra de Nick Vujicic para você se inspirar. Nick nasceu sem braços e pernas, mas isso não o impede de agarrar as oportunidades e de caminhar mais longe do que muita gente que deixa a vida inteira suas pernas saudáveis penduradas no sofá.

PARTE 1



PARTE 2



PARTE 3

14/02/2010

The Butterfly Circus

Meu pai recebeu um email de uma amiga indicando um filme para ele assistir. O filme é "O Circo da Borboleta", estrelado por Nick Vujicic, que nasceu sem braços e pernas. Talvez você fique com pena do personagem do filme ou ache a idéia de ele aparecer na tela um pouco deprimente. Quer saber? É melhor assistir o filme.

Se você já passou da lição do "the book is on the table" talvez entenda o áudio original em inglês. Se preferir, o filme também tem legendas em espanhol. O que? Também não entende espanhol? Que nada, você entende sim. Quando você vê o Brasil jogando contra a Argentina não entende tudo? Então vai entender a legenda também.


Se quiser saber mais sobre a vida de Nick Vujicic, visite Life Without Limbs. Veja também os vídeos que vou publicar aqui na próxima vez.

08/02/2010

Vovo'

Quando minha avó ainda vivia, meu pai costumava levá-la ao hospital fazer exames. Ela já estava com mais de setenta anos e as coisas iam ficando cada vez mais difíceis com a saúde e com a idade. Você é jovem? Então preste muita atenção no que vou dizer.

Na Bíblia há um trecho muito bonito que fala da juventude. Está no capítulo 12 do livro de Eclesiastes e diz assim: 

"LEMBRA-TE também do teu Criador nos dias da tua mocidade, antes que venham os maus dias, e cheguem os anos dos quais venhas a dizer: Não tenho neles contentamento;

"Antes que se escureçam o sol, e a luz, e a lua, e as estrelas, e tornem a vir as nuvens depois da chuva;

"No dia em que tremerem os guardas da casa, e se encurvarem os homens fortes, e cessarem os moedores, por já serem poucos, e se escurecerem os que olham pelas janelas; 

"E as portas da rua se fecharem por causa do baixo ruído da moedura, e se levantar à voz das aves, e todas as filhas da música se abaterem.

"Como também quando temerem o que é alto, e houver espantos no caminho, e florescer a amendoeira, e o gafanhoto for um peso, e perecer o apetite; porque o homem se vai à sua casa eterna, e os pranteadores andarão rodeando pela praça;

"Antes que se rompa o cordão de prata, e se quebre o copo de ouro, e se despedace o cântaro junto à fonte, e se quebre a roda junto ao poço, E o pó volte à terra, como o era, e o espírito volte a Deus, que o deu".  

Meu pai percebia tudo isso, enquanto acompanhava vovó pelos corredores do hospital. Quando a velhice vem, já não existe tanta vontade de fazer as coisas, ou contentamento. As mãos – os guardas da casa – estão trêmulas, as pernas – os homens fortes – se encurvaram e os dentes que restam já não moem como antes, enquanto os olhos – os que olham pelas janelas – já não vêem tão bem.

Este é o fim de todos nós, mas os jovens – principalmente os jovens – nem sempre entendem isso. Jovens são apressados, cheios de energia, têm grandes planos pela frente. E o vovô e a vovó? Bem, para caminhar ao lado deles é preciso diminuir o passo. Falar mais alto para que ouçam. Ter paciência para ouvir as histórias repetidas.

Acho que é isso: paciência! Pessoas idosas são como brinquedos com a pilha fraca. Elas vão diminuindo, diminuindo até pararem de vez. Você é jovem e tem alguma pessoa idosa em casa? Então tenha paciência. Diminua seu passo para acompanhar os passos dela. Converse das coisas que ela gosta de conversar. Experimente fazer isso, porque um dia alguém vai fazer o mesmo com você. Ou pelo menos você espera que façam. Seria bom, não é mesmo?


Vovó, Mamãe com Açúcar
GABRIELA NASCIMENTO SPADA E SOUZA

O livro traz fotos e frases que vão construindo, aos poucos, um gostoso bilhete de amor. Que vovó não vai se deliciar e se emocionar com tantas recordações? É uma homenagem para todas as avós do mundo. Nunca é tarde para mostrar a enorme admiração que elas despertam na gente.


04/02/2010

Uma luta pela vida

Decidi dar uma palhinha aqui da nova edição do livro "Uma luta pela vida" escrito por minha irmã. O livro estava esgotado, mas agora apareceu de novo e pode ser comprado pela Internet. Se você ler o livro, nem vai precisar mais vir aqui para ler minha história... Estou brincando, claro!
Uma Luta Pela Vida
Lia Persona

O vôo 3805 proveniente de Brasília chegava no horário previsto e preparava-se para pousar. Do andar superior do aeroporto eu podia ver as luzes do avião se aproximando rapidamente. Com apenas seis anos de idade, esticava o quanto podia meu corpinho para enxergar melhor. Lembro-me de como as janelas do avião pareciam incrivelmente pequenas da distância onde eu me encontrava. Tive uma impressão ruim. Minha mente infantil tentava imaginar como seria possível alguém viajar dentro de um avião que parecia ser tão pequeno. Fiquei preocupada só de pensar no tamanho do irmão que meus pais diziam que eu estava prestes a ganhar. Seria do tamanho de minha boneca Barbie?

Senti um certo alívio quando o vi pela primeira vez alguns minutos mais tarde, saindo pelo portão de desembarque. Vinha nos braços de uma mulher que não me era estranha. Ela já tinha nos visitado em outras ocasiões, mas sua chegada nunca fora cercada de tanta expectativ. Maria parecia não precisar fazer muita força para manter aquele corpoinho franzino aninhado em seus braços. Se não fosse pela tosse constante, ele passaria desapercebido. Não pesava mais do que uma bolsa. Pequena.

Maria era a pessoa certa para trazer Pedro. Tinha uma experiência de vida bem peculiar. Adotara oito crianças, algumas com problemas de saúde. Tirou-o do local onde estava, cuidou dele o sufciente para aguentar uma viagem e o trouxe em segurança para nós.

Arregalei meus olhos o máximo que pude. Não queria perder um detalhe sequer daquele primeiro momento. Captei cada particularidade do corpo daquela criança que era passada para os braços da minha mãe. Ela não precisou carregá-lo nove meses antes de nascer. Estava carregando agora pela primeira vez. Um menino de quatro anos. Achei que ele não combinava com minha mãe. Não parecia ser seu filho.

Tudo era diferente nele. Diferente da aparência de meu irmão biológico Lucas e da minha. Seu cabelo volumoso, cacheado e escuro não se parecia em nada com os nossos poucos fios descorados e escorridos. Nem que eu ficasse um ano inteiro tomando sol não conseguiria ficar com a pele tão morena quanto a dele. Maria contou que ele era descendente de negros e índios. Imaginei seus avós caçando com arco e flecha como nos desenhos que eu pintava na escola no Dia do Índio.

Não tive tempo de prosseguir com minhas imaginações. Saímos rapidamente do aeroporto noite adentro andando em direção ao carro no estacionamento. Pedro precisava descansar. Cada vez que ouvia sua tosse, meu coração acelerava. Fiquei assustada com seu estado. Parecia estar muito doente.

Aquele momento ainda permanece em minha memória. Acalentado, embalado, com todo o cuidado, dia após dia, não por saudosismo ou melancolia. Simplesmente por carinho e respeito. Essas coisas a gente não esquece facilmente. Aquela noite mudou minha vida.

Na verdade, mudou a vida de toda minha família e também a vida daquele que chegou numa cegonha a jato. Chegou para ficar. Foi o dia em que um novo começo foi traçado e todo meu futuro mudou. Tomou um novo caminho, um novo rumo. Muito do que sou hoje devo àquilo que considero como uma das melhores experiências que já me ocorreu. Recebi de presente uma lição de vida real, que estaria sempre ali, bem diante de meus olhos e de onde iria tirar inspiração para cada dia, para todos os que meu futuro ainda me reserve. 

(continua no livro...)

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Uma Luta Pela Vida - Lia Persona

Em uma "Luta pela Vida" Lia Persona compartilha suas emoções e memórias como irmã e enfermeira de seu irmão adotivo portador de paralisia cerebral. A autora intercala seu passado com seu presente; história com realidade; a luta de seu irmão pela vida, com a luta de seus pacientes por suas vidas.

Concorrendo com mais de 650 obras inscritas, esse romance baseado em fatos reais, foi vencedor do Concurso Literário Anjos de Branco e escolhido por uma comissão formada pelos escritores Antonio Olinto, José Louzeiro e Arnaldo Niskier da Academia Brasileira de Letras. A primeira edição de "Uma Luta pela Vida" foi publicada como parte da Coleção Anjos de Branco que inclui os autores Antonio Olinto, José Louzeiro, Helena Parente Cunha, Carlos Nejar, Arnaldo Niskier, Marcos Santarrita, Patch Adams e Maureen Mylander.

Lia persona é enfermeira formada pela Unicamp e atualmente reside com seu marido e seu filho nos Estados Unidos. Se estiver interessado em entrar em contato com a autora envie seu email para nurselia@yahoo.com.br

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