09/11/2021

Decidi livrar-me de minha companheira de muitos anos

Um dia meu pai estava no elevador e nele havia um casal. No quadro de avisos dizia que o "Cata Cacareco" da prefeitura iria passar naquele dia para pegar tudo que fosse material que não era mais usado, e o homem, vendo quem meu pai estava lendo o aviso, disse: "Estou levando minha esposa lá embaixo para o caminhão levar embora". Meu pai quase testemunhou um maridocídio naquele elevador.


Meu pai ri cada vez que se lembra da história, mas agora sou eu que irei me livrar de um cacareco: Minha poltrona de estimação. Se você sempre quis saber o que eu faço o dia inteiro e tinha vergonha de perguntar, a resposta é: "Fico sentado em minha poltrona querida, a gorducha esposa que me suporta há anos.". Já éramos como um casal, até meu cotovelo gastar seu braço de tanto ficarmos de braços dados e abrir um rombo fazendo saltar para fora um de seus tendões: a mola. 

Meu pai herdou duas poltronas imensas, de molas, que foram de minha avó, e antes, de minha bisavó, o que faz delas centenárias (não minha avó e bisavó, mas as poltronas). Já foram revestidas, reformadas, molhadas e enxugadas (adivinhe de quê) trocentas vezes, mas desta vez minha gorducha pediu divórcio. Não suporta mais meu peso em cima dela. Meu cotovelo acabou criando uma fratura exposta em minha companheira de tantos anos. 

É que antes da invenção dos plásticos e borrachas sintéticas as poltronas eram feitas de madeira e mola, e enchidas de palha. Essa já teve seus órgãos internos substituídos por espuma mais de uma vez, e quem cheirasse bem de perto iria achar que ela ainda tinha bexiga, pois as fraldas não são cem por cento perfeitas. Consumado o divórcio, não pense que vou ficar sem companheira. Já conquistei a gorducha estepe, irmã gêmea de minha poltrona, porém menos usada. 

O problema é que ela é coberta com um tecido brocado, resistente porém abrasivo, então meu delicado cotovelo não vai gostar nada de ficar raspando ali o tempo todo. Lembre-se de que sou autista, então meu corpo fica o tempo todo num vai-e-volta, o que é até bom porque não preciso pagar academia para perder a barriga. Mas o braço raspando são outros quinhentos. Por isso meu pai colocou um tecido de proteção nos braços de minha amada, assim ela não vai conseguir me beliscar. 

Quanto à minha outra companheira, vou fazer o que aquele homem no elevador disse que queria fazer com sua esposa. Mas é melhor eu não falar em voz alta porque ela é maior que eu e muito pesada. Sua estrutura óssea deve ter sido construída com madeira que foi da caravela de Cabral, de tão antiga e pesada. Será que se eu anunciar assim consigo pegar um bom dinheiro nela? "Vendo poltrona feita com madeira das caravelas".

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