Maria tinha adotado uma criança deficiente visual que mais tarde viria a enxergar graças a implantes de córneas. O açougueiro sabia disso e foi nela que pensou quando vieram oferecer um menino para quem quisesse adotar. O menino era eu!
Foi difícil para ela decidir que não podia adotar mais um - na verdade nos anos que se seguiram Maria e seu marido acabaram adotando um total de seis crianças. Mas foi até a favela me visitar e quase caiu de costas quando viu minhas condições.
Pra falar a verdade, o barraco era tão pequeno que ela não podia cair de costas, por isso simplesmente foi embora com aquela cena apertada no coração. Precisava preparar as malas para viajar. Iria a São Paulo levar seu filho adotivo para exames prévios antes de submetê-lo a uma cirurgia de implante de córnea.
Adivinha onde Maria iria ficar hospedada? Adivinhou. Ela tinha um casal de amigos em São Paulo, que conhecera na época em que tinham interesses comuns de cuidarem de crianças em uma comunidade rural no interior de Goiás. Agora quando precisava ir a São Paulo ficava hospedada no apartamento do casal. Pelo jeito dessa vez Deus seria seu agente de viagens.
Não era a primeira vez que Maria ficava com aquele casal. A diferença era que desta vez ela tinha uma missão a cumprir, mas nem sabia disso. Meus futuros pais estavam quase sem falar muito no assunto "adoção". E falavam menos ainda sobre "criança especial", "excepcional", "deficiente físico", "retardado", "débil mental", "inválido" e todos esses termos que as pessoas ficam discutindo se são politicamente corretos ou não. Eles não estavam muito preocupados com a forma, mas com o conteúdo do propósito que tinham no coração. (Leia o que papai escreveu sobre inclusão social).
É claro que estavam morrendo de vontade de contar para Maria, de perguntar tudo sobre adoção, de saber a opinião dela sobre o que pretendiam fazer e tudo mais. Mas precisaram se conter. Tinham o firme propósito de contar apenas para Deus e esperar que Ele respondesse as suas orações e as das crianças nesse sentido. Principalmente das duas crianças, seus filhos biológicos. Lucas tinha apenas quatro anos e Lia seis. Mas levavam muito a sério a idéia dos pais e tinham a vantagem de possuir uma fé infantil, vacina poderosa contra o medo, a insegurança e a expectativa.
Então veio a notícia inesperada. Maria contou de como o açougueiro havia falado de uma criança - era eu - que estava em busca de novos pais. Da avó, que cuidava da criança e havia morrido, da mãe que vivia nas ruas e não podia cuidar, do barraco, da doença, de tudo. Para completar, explicou que eu era cego, surdo, mudo e paralítico. Achei que nesse ponto ela exagerou!
Pelo menos era isso que ela tinha ouvido, embora eu não fosse surdo e nem paralítico. Cego, sim, por causa de uma catarata congênita. Meus músculos funcionavam, embora meus pés estivessem atrofiados por culpa de quatro anos na cama sem cuidados ou exercícios. Não é que eu fosse mudo, só não sabia falar, coisa que até hoje eu não aprendi. Culpa do cérebro, que tem o que chamam de paralisia cerebral, mas acho que só um pouquinho. Bem, eu não era tão ruim quanto Maria descrevera. Só um pouquinho. Se eu tinha algum ponto a favor? Claro, sou super simpático!
04/01/2009
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